Arrumar coisas faz mal à sua saúde
Já pensaram que espécie de ser humano supostamente evoluído nos transformamos quando estamos em arrumações?
Seja a fazer a mala, a empacotar coisas ou outra coisa qualquer que implique ter a de fechar no fim?
Se a coisa não corre logo bem, surge em nós um Hulk das arrumações. De repente só é possível arrumar por via da força. Por via do rebentamento do fecho. Hulk arruma. Hulk esmaga.
Anos e anos de evolução para subitamente, quando a mala não fecha à primeira, a única e pronta solução se resumir a fincarmos os dentes com força, inclinarmos a cabeça para dar aquela força extra, cerrar apenas um olho para parecer que estamos empenhados, e puxar o fecho com toda a pujança para que este consiga fechar finalmente lá dentro tudo o que queremos.
E quando, na maioria dos casos, bastava apenas usar o cérebro e ajustar o conteúdo para fechar melhor. Hulk não pensa.
Mas nem sempre é assim. E quando abrimos uma mala? Quando é a desarrumar?
Se a fechar nos tornamos num monstro verde sem cérebro, a abrir somos um pequeno pónei. Carinhosos e fofinhos.
Quando abrimos uma mala, o mundo é perfeito.
Temos todo um cuidado. Toda uma delicadeza. A roupa tem de ficar bonita. Bailamos enquanto o fazemos, até cantamos se for o caso. Os gestos são contidos e programados de forma a não danificar. Tudo é ponderado com suavidade. Delicadeza. Sem vincos ou dobras.
É um prato gourmet, do qual somos o chef e que deve ser reservado à temperatura e local ideais.
Mas e depois? Quando voltamos a arrumar exactamente essa mesma mala?
O pequeno pónei dá lugar à besta. Dobramos, enfiamos, empurramos, esmagamos, saltamos em cima se for necessário. Forçamos os cantos e não interessa se é uma roupa de seda ou se é a camisa que a avó ofereceu que está por baixo. Nada. Tem é de caber. O caber torna-se numa obsessão. No único objetivo. Ficamos primitivos numa espécie de macaco Gervásio que tem de colocar os produtos no sítio certo. Não interessa a forma. Só queremos a banana no fim.
O que antes era um prato gourmet passou a ser agora um bitoque sola de sapato, passado demais, que já devia estar na mesa há duas horas.
Enchemos tudo à bruta, descuidadamente. Até que chega a hora H. A hora da verdade.
Tentamos fechar. E não dá.
A primeira transpiração surge. Tentamos outra vez. Sem sucesso.
Os primeiros tiques nervosos começam a tomar conta de nós.
Voltamos a abrir. Tentamos pôr de outra forma. Não fecha na mesma. A nossa cor muda.
Repetimos mais duas, três vezes, nada.
Começamos a questionar a nossa vida miserável e gritamos:
"Mas isto para cá coube tudo!" , "Que fiz eu de errado nesta vida!?"
- Passam 15 minutos -
"Fechaaaa! Fechaaa!! Fecha Porra!!" - enquanto puxamos o fecho de dentes já cerrados
- Passam 25 minutos -
Estamos deitados na cama. A celebrar. Exaustos. Finalmente fechou.
Só que aquilo que era a nossa mala passou a assumir uma forma um pouco própria. Uma espécie de OVNI das malas de viagem. Que aparenta ser uma mala. Mas ao longe, não há certezas.
Mas coube tudo!
O macaco ganhou a sua banana e o Hulk foi embora.
Toda esta metamorfose. Toda esta paixão.
Foi exactamente o pelo que passei neste Dia de Reis.
Como um bom menino nascido nos anos 80, que teve religião e moral na escola somente pela viagem de estudo, não aprendi muito sobre os costumes natalícios, mas como sempre gostei muito de prendas, o Dia de Reis ficou. Assim como a particularidade de ser o dia em que se desfaz a árvore de Natal.
Mas, além de ser um puto dos anos 80, sou acima de tudo um bom português. Como tal, só a desfiz ontem. Fora de horas.
Só que não correu bem. Nada bem. Deu luta. Muita luta. E claro, a besta tomou conta de mim.
Provavelmente este Dezembro, no próximo Natal, voltarei a ter muito cuidado a tirá-la da caixa. Voltarei a ser aquele pequeno pónei dócil, tal como o fiz em 2017.
Resta é saber se ainda será uma árvore por essa altura. Temo que não.
Certamente estará bem mais careca, a avaliar pelo Outono precoce que lhe causei ontem.
Mas coube na caixa!
(imagem)
P.A